sábado, 24 de julho de 2010

Carne Legal para quem? Para os animais?


Não. De acordo com estatísticas oficiais da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), cerca de 56 bilhões de animais são criados e mortos anualmente para consumo humano. Esse número não inclui os bilhões de animais marinhos mortos anualmente, e registram apenas as mortes resultantes do uso de animais para alimentação. Em geral esses animais têm vidas miseráveis, repletas de privações e sofrimentos. Mesmo com todos os esforços da legislação para melhorar o bem-estar desses animais (geralmente não implementados e muito menos fiscalizados), todos sem exceção estão condenados à morte, e são trazidos à vida com o único objetivo de serem explorados e dar lucros a seus proprietários. Tais animais são, em sua maioria, mamíferos e aves e, portanto, são seres sencientes: possuem a consciência subjetiva de estarem neste mundo como indivíduos, sentem dor, emoções, possuem o interesse de viver e de evitar o sofrimento, e não desejam ser mortos. Embora esses animais obviamente não tenham os interesses mais complexos que nós humanos temos, como a liberdade de expressão, o interesse de votar ou de ter acesso à educação, compartilhamos com eles interesses básicos que devem respeitados, como o direito à integridade física e o direito de não ser considerado propriedade de alguém. Assim como nós, todos os outros animais sencientes possuem um valor intrínseco e não apenas um valor utilitário. A indústria de produtos de origem animal, legalizada ou não, reduz esses indivíduos ao status de coisas desprovidas de qualquer valor que não seja o valor monetário estabelecido pelo mercado.


Mesmo as indústrias que não desmatam, que possuem altos padrões de controle sanitário e supostamente tratam bem seus funcionários, fundamentam-se em um negócio que requer a violação dos direitos fundamentais desses seres não-humanos, visto que estes são trazidos à vida com o único objetivo de serem explorados. Se o consumo de produtos de origem animal fosse necessário para a manutenção de nossa nutrição, então nada poderia ser feito a esse respeito, a não ser tentar reduzir ao máximo o sofrimento dos animais. Entretanto, cientificamente o ser humano não tem qualquer necessidade nutricional de consumir produtos de origem animal, seja carne, leite ou ovos. Ao contrário, tal consumo está associado a uma maior incidência de diferentes doenças, tais como diabetes, arteriosclerose, reumatismo, hipertensão, osteoporose, anemias, doenças cardíacas, doenças renais, doenças respiratórias, derrame, esclerose múltipla, alguns tipos de cânceres e obesidade. O ser humano pode (e deve) prescindir desse consumo, optando por análogos de origem vegetal, com ganhos para a sua própria saúde (veja nas seções seguintes as considerações sobre a relação entre exploração de não-humanos e o meio ambiente e a violência). Uma vez que o consumo desses produtos implica a violação de direitos de outro ser e, além disso, há alternativas prontas de consumo, abster-se de produtos de origem animal passa a ser um dever moral.

Carne Legal para quem? Para o meio ambiente?

Infelizmente não. A produção de produtos de origem animal invariavelmente requer quantidades insustentáveis de recursos naturais. Atualmente, estima-se que apenas um terço da população mundial tem acesso à carne. Esse acesso requer o uso de toda a terra pastável disponível atualmente no mundo, gerando danos permanentes à natureza (no Brasil, 75% do desmatamento da Amazônia foi provocado pela pecuária). Os maiores consumidores de produtos de origem animal per capita são os países ricos e, em menor parte, os países emergentes como o Brasil. À medida que outros países se desenvolvem e adotam o modelo de consumo dos países desenvolvidos, mais produtos de origem animal são consumidos. Diante deste cenário, e associado ao crescimento populacional nas próximas décadas, o colapso do planeta é inevitável, pois estima-se que serão necessários cerca de quatro planetas Terra para criar animais em quantidade suficiente a todas essas pessoas. Este cenário fica ainda mais crítico ao considerarmos a necessidade de aumento do uso de biocombustíveis em longo prazo, uma vez que estima-se que já alcançamos o chamado pico do petróleo. Biocombustiveis poderão requerer extensas áreas de terra, o que entrará em competirão com as áreas usadas para pastagem.


Mesmo se considerarmos uma situação favorável ideal, na qual o uso da tecnologia seja capaz de reduzir as emissões dos animais, aumentar a eficiência do uso da terra e diminuir drasticamente o consumo de água, o cenário catastrófico ainda persistirá caso essas reduções não forem de pelo menos 80%. Desse modo, para o meio ambiente, produzir carne é simplesmente insustentável, seja em áreas desmatadas ilegalmente (alvo da campanha do MPF/PA), seja em áreas desmatadas legalmente.


Carne Legal para quem? Para a promoção da paz?


Certamente não. A exploração institucionalizada de animais não-humanos é a oficialização do uso da violência contra os mais fracos em nome do dinheiro e poder. Violência é algo aprendido, e o setor pecuário é o modelo de uma violência que inexoravelmente se reflete na sociedade. Como resultado de uma cultura milenar de exploração, seres mais fracos são tratados como propriedade, e seus valores intrínsecos são ignorados. Seus medos, suas dores, saudades e tristezas não tem qualquer valor de mercado.
  1.  Há apenas pouco mais de 200 anos, esses seres eram os escravos negros. E, embora a escravidão sempre tenha existido, não necessariamente por questões raciais, mas pelo simples fato de que a dominação traz vantagens aos exploradores, hoje a escravidão legalizada de humanos foi completada abolida. Os movimentos de emancipação de direitos que possibilitaram isso são uma conquista da humanidade e, embora o fim da escravidão humana possa ter trazido prejuízos financeiros (e.g., no século XVII, o fim da escravidão de índios trouxe graves prejuízos financeiros à cidade de São Paulo), muito se ganhou em dignidade. Atualmente, os animais não-humanos continuam sendo escravizados. Aceitamos isso como algo natural, inevitável ou um mal necessário. Entretanto, humanos não precisam de proteína animal ou produtos de origem animal. Não precisávamos de escravos há 200 anos, embora isso fosse aceito, legalizado, encorajado e resultasse em grandes lucros para os exploradores. Atualmente o consumo da carne é aceito, legalizado, encorajado pela indústria e resulta em grandes lucros para os exploradores. Mas não é justo. Acreditar que uma sociedade possa ser harmoniosa e pacífica enquanto houver escravização, de humanos ou não, é uma ilusão. A campanha do MP/PA, embora seja contra a escravidão de humanos na pecuária, é insuficiente pois ignora que a pecuária por si só é uma atividade de promoção da escravidão.

Sigmund Freud, discorrendo sobre a exploração animal provocada pelos humanos, escreveu: "No curso de seu desenvolvimento cultural o homem adquiriu uma posição dominante sobre suas criaturas companheiras no reino animal. Entretanto, não contente com esta supremacia, ele começou a colocar um abismo entre sua natureza e a deles. Negou a eles a posse da razão, atribuiu a si mesmo uma alma imortal, e alegou uma descendência divina a qual o permitiu destruir os laços de comunidade entre ele e o reino animal" [FRE17a]. Freud chamou esse estranho comportamento, o qual perdura até hoje, de "megalomania humana" [FRE17b].

Existe também uma clara conexão entre a exploração de animais não-humanos e a violência entre humanos. Através da história, na ascensão humana como ser dominante entre as espécies, a exploração dos animais não-humanos serviu como um modelo e fundação para a exploração entre os humanos. O estudo da história humana revela o padrão: primeiro, humanos exploram e abatem animais; então, ele tratam outras pessoas como animais e fazem o mesmo a eles.

Estudos científicos tem confirmado que a exploração de não-humanos está relacionada a comportamentos violentos contra humanos. No maior levantamento de assassinos em série já realizado [RBD88], constatou-se que 36% dos assassinos cometeram violência em relação a animais enquanto eram crianças; 46% enquanto adolescentes e 36% enquanto adultos. Segundo um estudo mais recente [WH03], 21% dos 354 assassinos seriais estudados já eram conhecidos por terem cometido crueldade contra animais, embora especule-se que um número maior possa estar relacionado a incidentes não-reportados. O inverso também é verdadeiro. Um estudo da polícia canadense mostra que 70% das pessoas detidas por crueldade com animais já possuía ficha com outros crimes violentos, incluindo homicídio [BK00].

No Brasil, um caso emblemático é o do motoboy Francisco de Assis Pereira, o Maníaco do Parque, que em 1998 confessou ter estuprado e assassinado 11 mulheres. O assassino se tornou conhecido por esse apelido porque cometia os crimes e enterrava os corpos das vítimas no Parque do Estado, em São Paulo (SP). Na época dos crimes, a imprensa noticiou que o motoboy apresentava antecedentes de prática de crueldade contra animais. Desde pequeno Francisco acompanhava as cenas de um abatedouro na vizinhança. "Ele subia em uma árvore da qual podia acompanhar todo o movimento, e acompanhava atentamente o abate," diz Adelaide Caíres, psicóloga especialista que acompanhou o caso [MAN08]. Segundo ela, "Tais cenas devem ter lhe provocado uma revolta profunda, pois se recordava delas com ódio intenso. Foi talvez o único momento de nossos contatos em que ele revelou emoção mais consistente". Filho e sobrinho de açougueiros, Francisco ainda garoto começou a colocar em prática esse aprendizado de violência ao caçar rolinhas, mutilá-las e fritá-las ainda vivas. Da mesma forma, também maltratava cães e gatos da vizinhança com tiros de chumbinho e pedradas.



Referências:
[FRE17a] Freud, S. "A Difficulty in the Path of Psycho-Analysis" (1917) in The Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud, James Strachey, trans. (London: Hogarth Press, 1955), Vol. XVII, 140.
[FRE17b] Freud, S. "Fixation to Traumas - The Unconscious" in Introductory Lectures on Psychoanalysis - Part III (1916-17), Lecture XVIII, Complete Works, Vol. XVI, 285.
[RBD88] Ressler, R., Burgess, A., and Douglas, J. "Sexual homicides: Patterns and motives" (1988) Lexington, MA: Lexington Books.
[WH03] Wright, J., Hensley, C. "From Animal Cruelty to Serial Murder: Applying the Graduation Hypothesis" (2003) International Journal of Offender Therapy and Comparative Criminology 47(1):71-88. DOI: 10.1177/0306624X02239276.
[BK00] Boat, B. W., Knight, J. C. "Experiences and needs of adult protective services case managers when assisting clients who have companion animals" (2000) Journal of Elder Abuse & Neglect 12(3/4):145-155. DOI: 0.1300/J084v12n03_07.
[MAN08] Mansilha, J. M. "A psicóloga dos monstros" (2008) Diário do Comércio, edição de 27 de março de 2008.


Carne legal para quem? Pela Ética ?
NÃO ! Seria imoral dizer que devemos respeitar os seres humanos por suas capacidades intelectuais, por sua capacidade de compreender equações matemáticas ou de utilizar a fala. Devemos isto sim, respeitar os interesses dos seres humanos por sua capacidade de manifestar afetos, de sofrer pela angústia e pela solidão, de sentir medo, fome e dor. Pelos mesmos motivos devemos igualmente ter respeito pelos animais. Respeitá-los porque almejam a liberdade. Por possuírem a capacidade natural de realizarem-se quando livres em seu ambiente natural. Respeitá-los porque, como nós estabelecemos laços afetivos entre si e são capazes de sentir medo, fome e dor. Mesmo que fosse moralmente correto considerar os animais como criaturas inferiores, seríamos obrigados a admitir que eles podem sofrer pela brutalidade e falta de compaixão humana.

Nas grandes fazendas mecanizadas, animais vivem durante toda a vida em alojamentos exíguos, onde muitas vezes não podem sequer dar mais que alguns passos em uma ou outra direção. Não recebem cuidados veterinários, são impedidos de sentir a relva sob as patas e até de ver a luz do sol. Estes seres que vivem e sentem, cujos sentidos são tão parecidos com os nossos, sofrem e morrem à velocidade de milhões por dia, para servir de matéria-prima à indústria dos produtos de origem animal.

Podemos fazer algo contra isso. Consumir carne, ovos e laticínios é desnecessário para nós. Devemos abandonar este hábito principalmente porque o atual sistema de produção maciça (O sistema de criação intensiva, largamente utilizado na produção de carne, ovos e laticínios, exige que os animais sejam submetidos a um alto grau de confinamento. São mantidos permanentemente presos, em compartimentos exíguos, e raramente vêem a luz do sol. Muitos deles são mutilados, sempre a sangue frio, sem aplicação de qualquer anestésico. Recebem doses maciças de químicos (hormônios e antibióticos), para que produzam mais, cresçam mais rapidamente e suportem as péssimas condições de vida. Sofrem de doenças ósseas, pelo excesso de peso e falta de mobilidade. São, enfim, tratados como peças de uma máquina cuja função é a de converter ração barata em carne, ovos e leite mais caros.) estes produtos causa dor, aflição e, finalmente, a morte de milhões de animais a cada dia. Quando nos sentamos à mesa, temos uma escolha a fazer: podemos contribuir para com a continuação dos horrores das unidades de criação intensiva e dos matadouros ou, adotando uma Dieta vegana, assumir uma postura de respeito pela vida.
Texto de Harlen Batagelo .